Partilhe esta Página



Total de visitas: 1158
4. Interpretando Papéis
4. Interpretando Papéis

Neste capítulo você encontrará ideias sobre como se divertir interpretando Vampiro. Os ensaios que se seguem cobrem áreas como Ação Ao Vivo em Vampiro, como entrar no personagem, falhas trágicas e muito mais. Essas ideias podem não se enquadrar em seu próprio estilo, mas pelo menos o ajudarão a explorar melhor este jogo. Vampiro é um RPG muito especial, que requer formas diferentes de fazer as coisas.

Os ensaios a seguir foram escritos por pessoas que trabalharam intensamente em algum estágio de Vampiro. Algumas delas estão conosco há um bocado de tempo e compreendem o que funciona e o que não funciona com elas. Cada uma dessas pessoas também possui uma perspectiva bastante pessoal sobre como Vampiro “deve” ser jogado, e elas nem sempre concordam entre si. Essas opiniões não são necessariamente as da White Wolf - é melhor não encará-las como verdades absolutas. Afinal de contas, ninguém aqui jamais disse que somos os maiores especialistas no assunto. No fundo, somos todos jogadores. Divirta-se!

 

A ANTIGA ARTE DA INTERPRETAÇÃO DE PAPÉIS

Por Sam Chupp

 

Algumas histórias são mágicas, devendo ser cantadas

Canções da boca do rio

Quando o mundo era jovem

E todas essas vozes espirituais governavam a noite.

- Paul Simon, “Spirit Voices”

 

Interpretar papéis não é novidade. É um nome novo para uma atividade muito antiga - contar histórias. Aqueles entre nós que sonham e ousam contar nossas próprias histórias são mudados para sempre. A interpretação de papéis nos levanta de nossas vidas, possibilitando-nos ver futuros potencialmente viáveis e transformar nossas perspectivas atuais. Percebamos ou não, estamos assumindo nossos lugares ao lado de nossos ancestrais, transmitindo mitos, cultura e sabedoria para as gerações mais jovens. Tornamo-nos xamãs, sábios, bardos e filósofos quando preparamos nossas mentes para contarmos uma história. Conectamo-nos com uma coisa antiga, misteriosa - nossa criatividade.

Não é de admirar que haja tantas pessoas que não consigam entender o que RPG significa para nós, afinal todo mundo tem sua criatividade sufocada na infância. Equívocos trágicos, somados a ignorância e medo, levaram muitos a fazer considerações errôneas sobre nossas atividades. As pessoas sempre temem o que não compreendem.

Em Vampiro, contamos histórias que confrontam a escuridão em nossas vidas e nos forçam a compreender o equilíbrio precário entre a Vida e a Morte. Essas histórias costumam conter os mesmos personagens e tramas das histórias que nos contavam quando éramos crianças. Como os mitos com os quais lidamos através dos RPGs constituem uma parte fundamental de nossa natureza, evocamos repetidamente os mesmos temas. Eles fazem parte de nossa condição humana, são inerentes a nossas vidas; eles nos ajudam a compreender o vasto mistério que carregamos dentro de nós. Ajudando-nos a compreender o mistério, esses temas nos ajudam a deixar de temê-los. Em seguida temos liberdade para explorar recantos de nosso íntimo numa profundidade que jamais sonhamos atingir.

Contar histórias, como qualquer outro talento, é uma atividade que pode ser praticada, explorada, desenvolvida. É um talento importante não apenas para o Narrador, mas também para os jogadores. Cada integrante do grupo de jogo é responsável por somar algo à história que está sendo contada.

Uma das melhores formas de nos conectarmos mais profundamente com a história é entramos em contato com narrativas antigas. Vá à biblioteca e leia sobre mitos, lendas, folclore e contos de fadas. O mito da queda e retorno de Inanna, Rainha do Céu, é fundamentalmente apropriada ao ponto de vista vampírico; leia os clássicos da literatura e da poesia. O Macbeth de Shakespeare explora a escuridão interior - os mesmos recessos sombrios desbravados por Vampiro. Converse com os seus avós e pergunte-lhes como a vida era quando eles tinham a sua idade. Nunca se sabe quando você precisará de detalhes sobre algum período histórico de um ponto de vista pessoal (afinal de contas, os vampiros vivem muito tempo; basta uma olhada em Chicago by Night para ver que é importante compreender a história de sua área quando estiver lidando com Membros). Nossos avós também têm suas próprias histórias para contar, histórias que você pode aproveitar, juntando-as com as suas e aquelas contadas pelo Narrador.

Outra forma de se conectar com as histórias de Vampiro é entrando em contato com as histórias do presente... aquelas que você ouve no noticiário, as piadas que os seus pais ou amigos contam para você durante um almoço e, o

mais importante, aquelas que o seu próprio cérebro lhe conta enquanto você está dormindo. Deixe um diário ao lado da sua cama e registre os seus sonhos e pesadelos. Esses são os “cartões postais do subconsciente”, como diz uma personagem do livro Northern Exposure. Os seus sonhos, e especialmente os seus pesadelos, uma vez traduzidos para o contexto da psique do seu personagem, proporcionarão personificações estranhas, poderosas e assustadoras.

As histórias do futuro também são muito importantes - fale com os visionários e com as crianças de hoje e eles lhes contarão essas histórias. A ficção científica também lida com esse assunto, assim como a poesia, a música, a arte. Ambiente as suas histórias “cinco minutos no futuro”: você estará fazendo o mesmo que os profetas e filósofos do passado.

Os narradores do passado usavam maquiagem, máscaras, música, tambores, marionetes, roupas, adereços, iluminação, ilusão e mímica. Quais dessas ferramentas você usa? O uso de uma ou de todas aprimorará a sua experiência narrativa e, concomitantemente, o ajudará a se aproximar dos narradores antigos que você segue instintivamente. Com toda certeza, esses adereços podem envolvê-lo muito mais na história. Não espere que o Narrador traga adereços para você. Arranje-os você mesmo, para o seu próprio personagem.

Como jogador, é seu dever ajudar a contar a história. O juiz só pode arbitrar. São os jogadores que pegam o cenário mental, os adereços e as roupas que o juiz trouxe e as usam para transcender o ambiente. Vocês, jogadores, são a carne e o sangue da história, fazem as coisas acontecerem e são os únicos responsáveis por se divertirem e, no processo, entrarem em contato com uma necessidade humana fundamental... a necessidade de criar.

Você precisa saber o papel que o seu personagem desempenha na história. Os atores costumam perguntar “Qual é a minha motivação?”. Descubra as motivações dos protagonistas do passado e verá a si mesmo entrando em seus papéis. Outra forma de fazer isto é pegar as características de um amigo que você admira e representar seu amigo, colocá-lo no personagem. Eu mesmo costumo fazer isso e de vez em quando me pego perguntando “E então, Gary (ou Leigh Ann, ou Dean, ou Lauren), o que você faria nesta situação?”. Vendo seus personagens de uma forma muito íntima - realmente como amigos que conhece muitíssimo bem - você será capaz de interpretá-los bem melhor.

Interpretar é divertido - pura brincadeira e também uma parte natural da condição humana. Se não houvesse interpretação, alguma outra coisa viria a tomar seu lugar, porque é imperativo que contemos histórias dentro de nós - histórias sobre nós mesmos e sobre nosso lugar no universo; histórias que recriamos a partir da enorme tapeçaria da experiência humana.

Nossos mitos e lendas modernos serão revisados por nossos filhos e filhas, da mesma forma que nós fazemos adaptações das histórias de nossos ancestrais. O ciclo continuará no futuro, como faz hoje, como fez sempre.

Como a arte do xamã, do filósofo, do bardo, nosso jogo é nosso trabalho. Um trabalho vital que, mesmo se não for capaz de mudar a sociedade e o mundo, mudará nossas vidas para melhor e fará com que nos sintamos parte de uma história contínua. Através da interpretação, podemos reconhecer nossas origens e ver nossos horizontes.

 

ATUANDO

Por Steve Crow

 

Eu estava atuando!

- Mestre Thespian, SLN

 

Quando eu estava no segundo grau, interessava-me por teatro. Contudo, nunca tive nenhuma vontade de aparecer no palco num papel principal. Ficava contente em trabalhar como diretor, iluminador ou figurante numa cena de multidão.

Talvez seja por causa disso que hoje em dia quando jogo RPG sou Narrador, e não jogador. Penso nos RPGs como peças de teatro. Na condição de Narrador, sou o diretor, o iluminador e os extras. Sou aquele que diz aos jogadores - os “astros” e “estrelas” - o que eles veem e o que podem fazer.

Mas se o Narrador é o diretor, o que são os jogadores?

Bem, a função básica de um jogador não é de um astro ou estrela, mas de um diretor de elenco. Quando um jogador se junta a uma crônica, ele precisa determinar exatamente que papel irá desempenhar, e em seguida escolher um personagem para o papel. Se você estiver jogando Vampiro, e o Narrador lhe disser que a nova história será uma fábula de intriga nos corredores do poder, então você não irá querer interpretar um Brujah ou um Gangrel, da mesma forma como você não selecionaria um ator que faz heróis de filmes de ação para um filme com essa trama.

De preferência, o jogador, na condição de um diretor de elenco, deve também olhar para os outros atores e atrizes. O seu astro trabalhará bem com os outros? Na maioria dos RPG, particularmente aqueles que narram fantasias e viagens, isto pode ser simples: “Como já tem dois ladrões no grupo, vou ter de escolher outra profissão.”

Porém, a interação vai muito mais fundo do que isso. Se você vai interpretar um personagem que é um galã, deverá informar-se se haverá personagens femininos no grupo. Se você for interpretar um Ravnos, é bom saber se haverá outros da sua espécie no grupo.

Como diretor de elenco, você procura duas coisas. A primeira é: há motivos para interagir com os outros personagens? Um solitário misógino pode ser divertido de interpretar, mas a sua falta de espírito de equipe raramente manterá os outros jogadores interessados no jogo. Lembre-se, você está selecionando apenas um dos vários “astros” em sua produção. Você não exerce muito controle sobre os atores selecionados pelos outros diretores de elenco.

A outra coisa para a qual você precisa estar atento é: o seu personagem vai se sobressair - não apenas em termos de profissão ou clã, mas de personalidade? Se outros dois personagens forem assassinos Assamitas, você não deveria ser um terceiro, a não ser que tenha em mente um papel incrível para o seu personagem. E talvez nem assim. Os outros jogadores provavelmente apenas confundirão vocês três.

E então, agora você vira um astro? Não. Em seguida, você estará participando da plateia. Lembre-se, quando você interpretar irá observar outras pessoas atuarem. O que você quer ver delas? Você realmente odeia fanaticamente os Brujah ou não tem saco para os Malkavianos? Em caso afirmativo, dê-lhes tempo para descobrir.

Se um amigo jogador assumir um papel que você simplesmente não suporta, que realmente despreza, então terá muitos conflitos. Os conflitos certamente são necessários, mas você não vai querer que cada encontro do seu astro com os demais degenere em discussões e gritaria. No teatro, isto significaria que vocês estariam tentando roubar a cena um do outro. Em sessões de RPG, tais conflitos podem acabar se transformando em verdadeiros banhos de sangue, caso você chegue à conclusão de que a única coisa a fazer para eliminar aquele incômodo é fazer com que o seu astro dê cabo do outro.

Converse com seus companheiros. Esclareça o que o aborrece e que tipo de coisas não quer ver acontecendo. Lembre-se, a última palavra não precisa ser sua. Ainda assim, ficará surpreso com a frequência com que uma discussão de alguns minutos no começo da crônica pode economizar um bocado de hostilidade mais tarde. Um pouco de afinação não apenas permitirá que você evite tensões futuras, como também reduzirá o estereótipo.

Seu próximo trabalho: maquiagem e roupas. O seu Narrador tem um mundo para criar e descrever para você. Dúzias de extras para selecionar. Cenários para criar, iluminação para planejar. Você é o único que deve preocupar-se em fazer o seu personagem brilhar. Como ele se veste? Quais são suas origens? Seus hábitos? Suas preferências?

Agora é o momento de desenvolver a atuação, segundo o Método. A idéia é “entrar na pele” do seu personagem. Desenvolver uma infância, uma carreira, uma história para a sua futura estrela. Mesmo se você não mencionar uma

única palavra da sua história no palco, os seus antecedentes estarão lá, influenciando cada ação que você tomar. Se, de tempos em tempos, você agir segundo esses antecedentes, verá como seu personagem desenvolve pequenas peculiaridades estranhas.

Se o seu personagem odeia valentões e arruaceiros, talvez seja porque um valentão bateu nele quando estava na escola. Se o valentão da escola era um atleta, talvez o personagem agora deteste esportes em geral, bem como a companhia de atletas. Agora que ele é um vampiro, adora usar a força física da qual carecia há tantos anos. Ou talvez você tenha se vingado do seu torturador pregando-lhe algumas peças, de modo que agora tem uma queda para a intriga e a esperteza.

Tudo isso a partir de um pedacinho de informação de antecedentes. Da próxima vez que o seu personagem bater num valentão, você não terá de se estender em explicações. Os antecedentes estão ali, devendo influenciar constantemente as suas ações. Essa é a diferença entre um personagem bem desenvolvido e uma figurinha bidimensional.

Finalmente, é hora de subir no palco. Os cenários estão prontos, as luzes estão marcadas, os figurantes estão disponíveis e a orquestra está ensaiada. A sua plateia - os seus colegas jogadores - está assistindo.

Boa sorte. Tomara que a sua produção fique muito tempo em cartaz.

 

FILHOS DO ORGULHO

Por Teeuwynn

 

O tirano é um filho do orgulho

Que bebe, vaidoso e imprudentemente,

De uma grande caneca de devassidão

Até que, da beira de seu abismo,

Mergulha no pó de sua esperança.

- Sófocles, Édipo Rei.

 

Cambaleante, um rei foge de seu palácio dourado, repelido pelo horror que ele mesmo causou. O sangue que corre das órbitas vazias de seus olhos mancha o manto real; a respiração lhe sai em soluços rasgados e ele se deixa cair de joelhos. Não pode mais ver o corpo sem vida de sua rainha, aquela que foi sua esposa e mãe. O rei arrancou os olhos com as próprias mãos, numa tentativa fútil de negar a prova que seu orgulho e sua curiosidade irrefreável levaram-no a descobrir. Este rei, este Édipo, foi condenado por seu coração por haver matado o pai e casado com a própria mãe.

Arrepiante, não acham? E poderoso, também. A tragédia de Édipo Rei despertou as emoções dos gregos antigos, ainda exercendo grande impacto nos dias de hoje. Por quê? Há muitos motivos para certas obras de ficção exercerem impacto duradouro, mas o que todas elas têm em comum é sua capacidade de falar aos nossos sentimentos - de fazer com que nós nos importemos. Por elas, podemos sentir amor, ódio, ojeriza, prazer, desespero e muito mais - mas jamais as ignoramos. As grande obras atingem os nossos nervos, forçando-nos a questionar nossas certezas, a nos reconectarmos com nossa humanidade mútua.

Nos RPG, assim como na ficção, criar um personagem que possua profundidade e ressonância suficiente para manter o seu interesse e o interesse de seus parceiros pode ser difícil. Uma das técnicas usadas pelos trágicos gregos, e por muitos grandes dramaturgos que os seguiram, é conceder aos seus personagem máculas trágicas. No drama de Sófocles, o orgulho de Édipo e sua necessidade em descobrir a verdade sobre o passado, a despeito das consequências, conduz Édipo e sua família a uma tragédia devastadora. Desde seu nascimento, ele estava destinado a matar seu pai e casar-se com sua mãe. Contudo, a mácula trágica de Édipo é que seu orgulho não lhe permitirá livrar-se do passado - ele precisa conhecer a verdade.

Normalmente, a vontade de descobrir a verdade é uma característica desejável. Mas no caso de Édipo, a necessidade de desvendar seu passado é sua mácula trágica, sua maldição. Conceder máculas trágicas a seu personagem pode aumentar a tensão dramática dentro dele, o que ajuda o Narrador a criar um crônica rica em emoção e significado.

Por sua própria natureza, os vampiros são criaturas com máculas trágicas, quase desprovidos de qualquer esperança em deter a queda inexorável à goela da Besta. Este é um dos motivos pelos quais Vampiro costuma provocar uma interpretação tão bem desenvolvida em seus jogadores. Seu personagem, normalmente contra sua própria vontade, é dragado para sua morte e pós-vida, motivado a matar em nome de uma sede insaciável e lutar desesperadamente por sua Humanidade.

Portanto, os personagens de Vampiro iniciam suas pós-vidas com uma mácula trágica inata. Mas antes que esses infelizes indivíduos fossem Abraçados, eles já eram mortais maculados com seu próprio conjunto de fraquezas. Ao criar e jogar com seu personagem vampiro, tente determinar que tipo de mácula trágica ele pode ter tido antes de tornar-se um Cainita. Ele era incapaz de perdoar? Ele tinha sempre necessidade de conseguir a aprovação dos outros? Ele precisava desesperadamente ser amado?

Agora, decida como essas características se manifestam em seu neófito. O seu Lambedor descobrirá que é incapaz de se perdoar pelas ações cometidas durante um frenesi, passando a se autodepreciar? Ou tentará desesperadamente negar a devastação que causou? Como esta luta infernal se manifestará no comportamento externo do seu personagem? Ele se tornará ainda mais reticente, incapaz de expor uma única faceta de seu eu verdadeiro por temer revelar sua mácula? Ou talvez torne-se hipersensível à menor das críticas, numa tentativa desesperada em evitar sua mácula? Este tipo de negação pode ser, por seu próprio mérito, uma mácula trágica.

Mesmo que seus colegas jogadores jamais saibam qualquer coisa sobre o conflito interno do seu personagem, irão beneficiar-se por possuírem um personagem inteiramente desenvolvido e tridimensional, com quem os seus próprios personagens possam interagir.

Ao conceder uma mácula trágica ao seu personagem você aumenta o peso de um fardo praticamente já insuportável: a condição vampírica. Esta dor adicional oferece uma batalha extremamente pessoal para o seu personagem Cainita enfrentar. O peso adicional pode parecer inicialmente grande demais para ser carregado. Contudo, quanto mais difícil for o desafio que um personagem precisar enfrentar, maior será o fardo a ser carregado e mais doces serão as vitórias (a despeito do quanto sejam pequenas).

Já foi dito que alguém que vive uma grande tragédia pessoal, e sobrevive a ela, torna-se mais compreensivo com as pessoas que o cercam. Ver e experimentar os piores aspectos da vida (e da pós-vida) confere uma maior apreciação pelo que ela oferece de bom. Quando um indivíduo desce às suas profundezas, sua alma, paradoxalmente, ganha asas.

Sófocles coloca Édipo na pior das posições: ele não destruiu apenas a própria vida, mas as vidas daqueles que lhe concederam essa dádiva. Ainda assim, no drama seguinte, Édipo em Colona, Édipo livra-se de seu orgulho e consegue ajudar sua cidade de Tebas de uma forma que não conseguia enquanto era rei. Sua descida ao seu inferno pessoal concedeu-lhe sabedoria. No fim, quando encara a morte, Édipo alcança a paz e a salvação verdadeiras.

Ao jogar com um personagem duplamente maculado numa crônica de Vampiro, você e os seus amigos jogadores precisam ser capazes de apreciar o esforço de seus personagens em manter sua Humanidade, em elevar-se acima de suas máculas, para talvez atingir a Golconda ou mesmo readquirir seu estado humano. A maioria não conseguirá. Mas o próprio esforço será enobrecedor. Ao aceitar este desafio os jogadores apreciarão tudo de bom que eles podem encontrar em si mesmos e no mundo escuro que habitam.

 

A CRIANÇA INTERIOR

Por William Spencer-Hale

 

A criança é mãe do homem.

- William Wordsworth.

 

Adoro jogar RPG. Acho que sempre gostei. Desde que era um garotinho brincando de polícia e ladrão ou fingindo que era um soldado, sempre gostei da arte do faz de conta. De algum modo, perdi o barco e nunca cresci ou deixei de ter interesse nesse tipo de coisa. Ainda não consigo ver nada de errado nisso.

Jogar RPG brindou-me com muitos anos de diversão. Quando lembro de algumas das grandes partidas das quais participei, sorrio para mim mesmo ou sinto vontade de compartilhar meus triunfos com outros que possuam por esse passatempo o mesmo amor que eu. Porém, apesar de meu amor pela interpretação de papéis, só comecei a decantar suas qualidades depois de descobrir a ação ao vivo.

A primeira vez que interpretei ação ao vivo foi na Magnum Opus Con, uma convenção em Greenville, Carolina do Sul, em março de 1992. Alguns colegas de trabalho me procuraram para jogar uma versão ao vivo de Vampiro: A Máscara. A trama era simples. Vários vampiros e lobisomens tinham sido assassinados em Milwaukee, a cidade onde o jogo se passava. Cada lado culpava o outro; era responsabilidade dos jogadores encontrarem uma forma de restabelecer a paz entre as duas facções. O que estava para acontecer seria memorável.

Começamos o jogo como qualquer outro, com cada um dos jogadores assumindo a persona de seu personagem e passando para o lado apropriado. Inicialmente não houve muita diferença entre este jogo e aquele ao que eu estava acostumado a participar em torno de uma mesa, salvo o fato de não se usar dados. Mas logo os jogadores começaram a fazer mais que apresentar seus personagens. Eles começaram a ver pelos olhos dos personagens, a sentir o que eles sentiriam. Livres dos grilhões das fichas de personagens e dados, eles se afastaram de suas vidas normais e se tornaram realmente o personagem. Eles transcenderam o reino da interpretação contemporânea e se envolveram no próximo passo lógico deste passatempo. Eles alcançaram o cerne de si mesmos, descobriram a criança interior e trouxeram-na à superfície em toda sua glória.

A primeira trama de ação ao vivo parecia um grande jogo de polícia e ladrão jogado por adultos. Parecia sob um grande número de aspectos, mas também era muito mais. Os jogadores pareciam perder suas inibições, o que lhes permitia experimentar toda a atmosfera do jogo. A síntese com os personagens acrescentava ao jogo uma dimensão até aqui obscura. Essa dimensão transformou a experiência em mais que um simples jogo. De algum modo insuflou-lhe vida e nos transportou para outro lugar durante algumas horas. A ação ao vivo se tornou uma forma de reviver todas aquelas fantasias da infância de se tornar outra pessoa e de viver através dela. Todos nós estávamos ao redor de uma grande mesa de reunião, gritando, rosnando e mostrando as garras uns para os outros, sem perceber o quanto estávamos envolvidos até que o jogo terminou e pudemos retornar a nós mesmos e refletir sobre o que tinha acontecido. Foi mesmo um dia mágico.

Desde então, passei a explorar muitos gêneros diferentes de RPG num formato de ação ao vivo, desde ficção científica até espada e feitiçaria e tudo que há entre eles. Fazendo isso, descobri o que é realmente interpretar. É mais que um escapismo temporário da realidade. É uma forma de arte e uma ferramenta de aprendizado. Através da ação ao vivo, pode-se manusear melhor esta ferramenta e usá-la para atiçar as chamas de nossas imaginações. A seguir, proponho algumas sugestões de como libertar a criança interior e vivenciar a glória plena da interpretação ao vivo.

A interpretação ao vivo é um esforço grupal. Ela depende da colaboração de todos envolvidos na atividade. O Narrador não é o único responsável por prover aos jogadores ideias e encontros: essa é a função de todos os participantes do jogo. Sob diversos aspectos, a ação ao vivo é como uma peça de teatro. É um ambiente no qual os personagens são igualmente importantes e dependem das ações dos outros para determinar as suas próprias. Isto acrescenta um sentimento multidimensional ao jogo, à medida que os outros personagens não apenas procuram o objetivo que lhes é apresentado pelo Narrador, como também tentam alcançar seus próprios desejos. Isto pode ajudar o jogo de muitas formas, sendo a primeira, poupar trabalho ao Narrador. Ele não precisa mais apresentar aos jogadores uma trama atrás da outra, o que lhe concede tempo para fazer outras coisas. Os jogadores criam suas próprias tramas e o Narrador precisa ajudá-los apenas quando necessário.

Enquanto estiver numa sessão de ação ao vivo, não tenha vergonha de exagerar na interpretação do seu personagem. Não há ambiente melhor para fazer isso. Quanto mais um jogador entrar em seu personagem, mais os outros jogadores se identificarão com ele, e não com a pessoa por trás dele. É isto que separa a ação ao vivo do jogo de mesa - a possibilidade de ver o personagem em pé na sua frente, de não precisar imaginá-lo. É uma forma de liberar a imaginação para voar a alturas ainda maiores.

Embora os jogadores devam dar o máximo de si na interpretação de seus personagens, algumas coisas precisam ser evitadas. Entre elas, violência desnecessária e contato físico com outros jogadores. Mesmo no contexto deste jogo é importante que os jogadores respeitem os desejos dos outros e não os toquem sem acordo prévio. Não ainda significa não, mesmo no jogo. Isto é especialmente importante durante uma cena de combate. Não represente uma cena de combate - ela pode acabar com um dos participantes sendo ferido de verdade. Procure o Narrador e deixe-o decidir o resultado.

Os adereços também são muito importante para o sucesso do jogo. Podem ser qualquer coisa, desde roupas adequadas até sangue falso, sendo limitados apenas pela imaginação dos jogadores e o julgamento do Narrador.

Os modos de vestir conferem aos jogadores uma forma melhor de assumir os papéis dos seus personagens, não apenas tornando o personagem mais fácil e divertido de jogar, mas também ajudando os outros jogadores a identificarem mais facilmente o personagem. Isso confere uma dimensão desconhecida ao jogo de mesa.

Outros adereços, como sangue falso ou dinheiro de mentirinha, também aprofundam o jogo. Eles permitem aos jogadores verem seus pertences e puxar os seus personagens do fundo de suas imaginações para o mundo material. Mas não se esqueça que, embora os adereços sejam importantes, deve-se tomar cuidado com eles em alguns casos. Armas de mentira, como pistolas de brinquedo e facas podem ser muito perturbadoras para alguns, dependendo do quanto pareçam reais. Não use nenhum adereço que possa ser confundido com a coisa verdadeira: isso pode causar problemas. Não apenas com os transeuntes, mas também com a polícia. Algumas pessoas simplesmente não conseguem entender que a ação ao vivo é apenas um jogo, e essas pessoas devem ser evitadas.

Outra forma de ajudar a garantir o sucesso de um jogo de ação ao vivo é criar a atmosfera apropriada, luzes baixas conferem um clima diferente a um espaço. Cubra os móveis com lençóis para distorcer a forma familiar e conferir a ilusão de um lugar novo e misterioso. Música também pode acrescentar clima ao jogo; o tipo que for tocado deve refletir a história que está sendo contada.

Vampiro: A Máscara é o jogo perfeito para este tipo de interpretação. É um jogo baseado em intriga, no qual tramas e contra-tramas são de importância vital. Ele concede aos jogadores um número infinito de oportunidades de interagir com outros, e de criar planos intrincados que poderão, com o tempo, envolver outros lugares nesses esquemas à medida que esses planos sejam colocados em prática. Vampiro é uma teia complexa de traição, fraude e, quando surge a oportunidade, lealdade. É a lona perfeita para cobrir o ambiente ideal de ação ao vivo. Ambientado no mundo Punk-gótico contemporâneo, Vampiro pode usar os muitos caminhos da ação ao vivo para criar um jogo memorável.

A mecânica de um jogo como esse deve ser simples, para evitar que a trama perca sua importância. Os sistemas complexos de decisão aleatória (como os dados) não são necessários, devendo ser evitados a qualquer custo, porque interferem com o fluxo do jogo e afastam os jogadores de seus personagens. Este é um jogo no qual o clima e a história são tudo; tudo que as convenções de decisão aleatória farão será destruir a trama, deixando os jogadores desinteressados. O propósito global da ação ao vivo é libertar os jogadores dos grilhões dos jogos de guerra e transformar a interação no foco do jogo.

Assim como na brincadeira de Polícia e Ladrão, o único requisito indispensável para que tudo corra bem na ação ao vivo é a imaginação. Entregue-se à criança que existe dentro de você e ela se encarregará de guiar o adulto a novos horizontes, e mesmo àqueles que não são tão novos mas apenas permaneceram esquecidos por muito, muito tempo.

 

COMBATE CRIATIVO, OU COMO PROVOCAR O SEU NARRADOR E SE DAR BEM

Por Jay Morrison

 

Ouço todas as noites, mais um tiroteio

a tensão cresce

com a Contagem de Corpos.

- Body Count, “Body Count”

 

A primeiríssima regra que aprendi como Narrador foi simplesmente que os jogadores de qualquer jogo fazem tudo que podem para confundir você. Como? Fazendo coisas que as regras do jogo simplesmente não cobrem. Por quê? Porque, exatamente como o Narrador e todas aquelas pessoas que criam os jogos que jogamos, eles têm imaginações ativas.

A imaginação é uma parte essencial de qualquer jogo de interpretação. Sem a capacidade de imaginar, o jogo não passa de uma pilha de papel com palavras, desenhos e regras que não significam coisa alguma, exceto que de vez em quando você deve jogar dados.

A imaginação que torna o jogo tão divertido é também a praga que atormenta todos os Narradores, porque os jogadores mais cedo ou mais tarde desejarão usar uma arma que não exista no jogo. Por exemplo: quanto dano uma motocicleta causa? Você tem resposta? Nem eu tinha, antes que um dos membros do meu grupo de jogo de Vampiro me disse que ia colocar a roda traseira da sua motocicleta em cima do vampiro que havia acabado de nocautear, e ligar o motor.

Eu não darei respostas aqui - isso cabe ao Narrador decidir, pelo menos até que alguém por trás das cenas decida acrescentar “Dano Causado por Motocicleta e Dificuldade” à lista de armas. Quanto dano uma mangueira de incêndio pode causar? Como ninguém ainda tinha me perguntado isso, eu não havia me preocupado em descobrir. Mas apenas por farra, por que não atingir o seu oponente com 150 kg de pressão por centímetro quadrado e ver seu Narrador contorcer-se, decidindo os efeitos?

Tem uma personagem na minha crônica que não carrega uma só arma convencional. Ela criou sapatos especiais, com ferrões escamoteáveis nos saltos de dez centímetros, com os quais atinge seus oponentes. Ela carrega várias garrafas de uma água de colônia caríssima, um spray de cabelo - e um isqueiro. Esse é o arsenal dela, exceto por uma faca de prata para ataques repentinos de Lupinos.

Esta jogadora tornou a minha carreira de Narrador um verdadeiro inferno, desafiando-me a adivinhar danos e dificuldades - bem como os efeitos colaterais de falhas críticas - de tudo, desde pimenta nos olhos de seus oponentes até um uma rajada de spray de cabelo flamejante à queima-roupa. Por que ela faz isso comigo? A jogadora explica que, como sua personagem é uma Ventrue, as armas convencionais iriam simplesmente “destoar da sua roupa, ora bolas!” Particularmente, acho que ela está querendo me levar à loucura.

É enfurecedor. É frustrante. E mais do que tudo, é uma mudança de ritmo muito agradável. Uma pistola de brinquedo cheia de água benta pode causar dano em vampiros de Bali? Bem, sim. Mas quanto? A decisão cabe exclusivamente ao Narrador.

Outro personagem em minha tropa carrega uma pistola sinalizadora. Eu tive de decidir a Precisão, a Dificuldade, o Dano e o Alcance da maldita coisa em várias ocasiões. Mas tem gente que exagera - apenas os jogadores realmente suicidas cometem a estupidez de carregar cinco coquetéis molotov debaixo do casaco. Isso acabou logo depois que um deles passou correndo por um vão de porta em chamas e que o outro caiu de sua motocicleta, quando tomei a liberdade de decidir que uma de suas garrafinhas quebrou. Esses personagens não se encontram mais entre os mortos-vivos.

Onde quero chegar? Colocando em termos simples, se cada um de vocês escrevesse 10 sugestões para armamentos fora do comum e em seguida todas essas sugestões fossem compiladas num outro livro de consulta - desconsiderando que esse livro teria umas três mil páginas, o que impossibilitaria a editora de publicá-lo - ainda haveria alguém que apontaria alguma coisa que não foi coberta por este novo e melhorado livro de consulta de Vampiro: A Máscara.

Leia novamente a regra de ouro de Vampiro: não há regras. Isso funciona em dois sentidos. O Narrador pode ignorar as regras do jogo se elas não se enquadrarem nos planos, e o jogador pode desafiar a mente do Narrador com combate criativo. “Essas regras não são exatamente regras, mas linhas de orientação” você está livre para usar e abusar delas, ou para ignorá-las e alterá-las como julgar adequado.”

Nunca escreveram uma regra mais significativa num jogo. Ela permite ao Narrador controlar o jogo sem ter de se preocupar com um jogador gritando “Você não pode fazer isso! Na página tal eles explicam como é...” e permite ao jogador perguntar “Quanto Dano ele vai receber seu eu acertar a sua cabeça com a minha frigideira?” Não é fantástico? Sei porque adoro a “regra de ouro”: ela faz o jogo correr com muito mais suavidade. Pelo menos até a próxima vez que a senhorita Ventrue tirar um coelho da cartola.

Leia as regras, olhe as tabelas de armas e veja se o que encontrar tem a ver com você. Se nada ali tiver a sua cara, seja criativo. O seu Narrador pode odiá-lo por isso, pode chegar até o ponto de dizer que não há nenhuma arma como aquela nos livros de regras. Pois bem: faça o Narrador correr atrás!!! Sempre gosto de ver alguém na minha crônica usando sua imaginação, porque isso demonstra que ele está se divertindo com a história.

Se eles odiaram a história, então estarão lá atrás discutindo com o “Sr. Sabe Todas as Regras” sobre como podem fazer alguma coisa. Eu faço o possível para evitar ter alguém dessa laia no meu grupo de jogo. Afinal de contas, sou eu que tenho a responsabilidade pela diversão dos jogadores e pela minha própria. E esse é o motivo pelo qual jogamos, é ou não é?

 

JOGANDO COM NEÓFITOS

Por Lyndi Hathaway

 

Curve-se diante de quem você serve

Você vai receber o que merece.

- Nine Inch Nails, “Head Like a Hole”

 

Sempre gostei de jogar todos os tipos de jogos, especialmente aqueles nos quais eu era boa. Mesmo quando era criança, os jogos que mais me interessavam eram aqueles que envolviam atuação. Fosse polícia e ladrão, cowboy e índio ou “casinha”, sempre havia espaço nessas brincadeiras para a interpretação. A melhor coisa em brincar com esses jogos não era realmente os aspectos físicos que compõem a cena, mas a imaginação que cada um de nós colocava no jogo para torná-lo interessante. Mesmo quando éramos criancinhas usávamos a representação de papéis para criar uma forma de arte - a arte de interpretar.

Interpretar é fácil - qualquer um pode fazê-lo. Com o passar dos anos nós nos tornamos tão bons nisso que um simples jogo de polícia e ladrão hoje é, literalmente, brincadeira de criança. Passamos para jogos que nos estimulam e provocam a uma interpretação avançada. Contudo, nem todos nós somos especialistas em interpretação. Eu venho “interpretando” a minha vida inteira, mas eu não havia compreendido o conceito de interpretação como uma arte.

Inicialmente pensei que era ultrajante imaginar que nossas fantasias pudessem ser usadas para divertir. Ao mesmo tempo era assustador porque, quando eu era criança, as fantasias lidavam com seres comuns e agora elas lidam com versões expandidas desses seres. Minha primeira experiência em interpretação foi um livro que ganhei de um amigo que já jogava RPG há anos. E, devo admitir, fiquei absolutamente fascinada com o livro. Tempos depois, atrevi-me a participar de uma sessão de jogo. Eu estava me sentindo tão nervosa e deslocada que durante toda a sessão não me envolvi uma vez sequer. Eu não sei se isso ocorreu porque eu não sabia direito o que estava acontecendo, ou o que dizer, ou como responder ao que o Narrador estava nos relatando, mas inicialmente senti-me confusa.

Havia tantas estatísticas para lembrar, e o que cada teste determinaria quando os dados fossem jogados na mesa. Mas eu fiquei interessada em jogar. Aos poucos, comecei a perceber que meu problema era verbalizar minhas ações de interpretação. Quero dizer, quando eu queria que minha personagem dissesse ou fizesse alguma coisa, essa coisa era decidida nos dados. Foi então que decidi que minha nova forma de arte de interpretar tinha chegado para ficar, e ficaria até que uma nova surgisse. Não passou muito tempo até que eu me mudasse para Atlanta e encontrasse um sistema de interpretação que afastaria as estatísticas de mim, e que traria de volta a arte da interpretação.

Quando me veio às mãos meu primeiro exemplar de Vampiro: A Máscara, vi uma luz no fim do túnel. O sistema Vampiro despertou meu talento para a interpretação, um talento que não vinha sendo usado desde que eu era menininha. Durante o primeiro jogo de Vampiro do qual participei ainda senti a mesma dificuldade em verbalizar minhas ações, mas depois de alguns minutos as coisas começaram a se encaixar em seus lugares. Fiquei muito impressionada com a forma como Vampiro me permitia fazer minhas próprias escolhas, dependendo apenas da minha personagem, não do que era determinado pelos dados. Eu podia decidir quais eram os pontos fortes da minha personagem, e quais habilidades ela possuiria. O sistema de jogo em si era muito realista. Foi por causa disso que senti tanta facilidade em me adaptar. Acredito que o sistema foi planejado para que todos nós possamos parar e pensar sobre vampiros existindo na realidade: desta forma, qualquer personagem que planejamos começa a resgatar uma parte de nossas vidas que determina o curso da natureza.

Talvez os enlouquecidos Malkavianos sejam na verdade nossa forma de expressar confusão, tormento, rejeição. Talvez os Toreador, com seu culto pela aparência e seu amor pela música, sejam nossa forma de lidar com nossa vaidade.

Os neófitos não devem sentir-se tímidos ao descobrirem os jogos de interpretação. Representar papéis é uma coisa que todos já fizemos. Não deixe de jogar porque você ainda não está preparado e equipado com muito conhecimento sobre o jogo. Há muita coisa que pode ser feita e explorada com o tempo. Pense apenas no quanto você exercitará sua criatividade e imaginação, e no quanto se divertirá descobrindo a arte da interpretação. No fundo, tudo é apenas um jogo.

Dicas:

Sugestões para novatos: Relaxe, fique à vontade; se tiver alguma dúvida, pergunte. Quando você se confrontar com uma situação, pense nela e não fique obcecado em se familiarizar com a mecânica do jogo. Observe como os jogadores mais experientes fazem. Pense numa partida de RPG como se fosse uma aula de teatro. Enquanto estiver na fase de observação e aprendizado da mecânica do jogo, não conseguirá memorizar tudo imediatamente. Atenha-se às informações mais importantes no momento. Não se sinta intimidado pelos jogadores mais experientes. Fique à vontade - torne-se o personagem, deixe sua imaginação delirar, explore tudo, conheça as suas opções, encontre seu ritmo, não se conforme com uma idéia ou com um ponto de vista de um outro personagem e esteja aberto a todo tipo de experiências.

Sugestões para veteranos: Experimente níveis diferentes de personagens e habilidades. Procure apimentar o jogo. Aconselhe gentilmente os novatos, porque eles tenderão a seguir e imitar os jogadores mais experientes. “Aceite” os novos personagens. Seja receptivo para o impossível. Estabeleça objetivos específicos para o seu personagem. Seja criativo. Jamais recuse experiências novas. Permita ao Narrador levá-lo a novos lugares e confie nele, porque sempre tomará conta direitinho de você. Recrie a atmosfera para seu próprio uso pessoal. Crie personalidades novas e diferentes, novas ideias e situações, novas Características de Narrativa.

 

O NARRADOR-JOGADOR

Por Dustin Browder

 

Quem pode controlar seu destino?

- Shakespeare, Otelo, O Mouro de Veneza.

 

Costumo ouvir os jogadores falarem que seu Narrador é isso ou aquilo, comentarem que esse é "ruim" ou aquele é "fraco". Ao jogar, ou mesmo ler, Vampiro: A Máscara, parece evidente que o mérito pelo sucesso do jogo, ou a culpa pelo seu fracasso, repousa sempre sobre os ombros do Narrador. Se ele estiver despreparado, então o jogo está destinado a fracassar. Nesse caso, o Narrador deve ser reprimido.

Já sou Narrador há mais de uma década, e o segredo que eles nunca contam a vocês (mas vou contar-lhes agora) é que os jogadores “dirigem” o jogo. É isso mesmo - são os jogadores que estão no comando e eles contarão a história exatamente tanto quanto (na verdade, mais que) o Narrador. Em Vampiro - onde a história é um olhar trágico nas almas amaldiçoadas que podem, no máximo, ter boas intenções por trás de seus atos malignos - os jogadores dirigem o espetáculo, afinal serão os seus personagens que todo mundo irá ver.

Onde nós estaríamos se fosse o Narrador quem carregasse sozinho o peso total da responsabilidade pelo sucesso de um jogo? Nós temos cinco a seis pessoas num jogo e apenas uma delas faz todo o trabalho para tornar o jogo empolgante? Com toda certeza, na pior das hipóteses, o trabalho deve ser dividido. Cada um dos jogadores deve contribuir com alguma coisa. Por necessidade, o Narrador precisa esforçar-se mais para preparar cada sessão de jogo do que os jogadores, mas pensar que os jogadores não têm qualquer responsabilidade é um grande erro.

Se você pensa que a sua crônica de Vampiro poderia ser mais empolgante, e que é o Narrador que está “estragando tudo”, então, em vez de começar a sua própria crônica, experimente aprimorar a dele. É o mínimo que você pode fazer como jogador.

A primeira coisa que você precisa é arranjar sarna para se coçar. O melhor momento para isso é durante a geração do personagem. Não crie um vampiro cuja vida seja um mar de rosas. Faça da vida dele um inferno. Escolha Defeitos neste livro. Poucos desses defeitos são compensados pelos pontos que seu personagem recebe (se não acredita em mim, dê uma olhada em Futuro Negro), mas cada um deles oferece uma grande oportunidade para interpretar e permitir que seu Narrador manipule uma vasta gama de ideias.

Não venha de fora da cidade onde se passa a crônica. Diga ao jogador que tipo de vampiro você quer criar e descubra como os outros vampiros da cidade poderiam se enquadrar na história do seu personagem. Desta forma, os seus contatos mortais, o seu senhor e todos seus inimigos vampiros estarão bem próximos de você. Mais uma vez, o que é duro para o seu vampiro é bom para você. Quanto mais fácil for a vida do seu vampiro, mais chato será o jogo.

Não saia procurando por formas de evitar beber sangue humano. Esta é a essência do horror em ser um vampiro. Claro, alguns vampiros gostariam de evitar o sangue humano, mas não se esqueça de que nada pode substituí-lo. Nenhuma outra coisa tem o mesmo gosto nem satisfaz a Fome. Claro, não existe nenhuma regra dizendo que você precisa beber sangue humano, mas pense no quanto o jogo ficaria tedioso se todos os vampiros virassem assaltantes de abatedouros.

O Narrador não é a única pessoa que precisa preparar-se para uma sessão. Você, como jogador, também precisa preparar-se mentalmente. Como você provavelmente irá jogar à noite, veja o sol se pôr e espere até que dele tenha sobrado apenas um suave resplandecer no horizonte. Agora, imagine que isso é a primeira coisa que você vê ao acordar. Aprenda a amar a noite e sua negritude. Imagine como seria ter de caçar humanos - o poder, a culpa. Imagine-se tentando dizer a sua família, namorada ou amigos que você é um vampiro.

Em suma, personalize. Para entrar no mundo fantástico de seu vampiro, você precisa compreender que ele um dia já foi humano, e como humano, você pode imaginar como ele se sente agora. É por causa disso que Vampiro é um jogo de horror pessoal. Não crie um vampiro que seja tão estranho e alienígena que você não consiga entender como sua mente e seu coração funcionam.

Depois que começar a jogar, não pare - para nada. Não fale sobre filmes, um livro que acaba de ler ou qualquer outra coisa. Faça com que cada palavra que sair de sua boca seja algo dito pelo seu vampiro. Depois que o jogo tiver acabado, e apenas então, você poderá sair do personagem. Deixe o vampiro ficar no jogo e vá para casa, livre de seus problemas, mas capacitado a lidar com eles com muito mais sabedoria.

Qualquer ator ou poeta performático lhe dirá que cada vez que ele conta sua história (seja uma peça ou um poema), ela sai diferente. A plateia para qual ele se apresenta induz um efeito na história; a interação entre a plateia e o Narrador faz a história ficar melhor. Não podemos fazer isso com uma tela de cinema. O filme está morto para nós: ele não altera seu ritmo ou para quando gargalhamos.

O Narrador não pode ser um filme. Ele precisa reagir aos seus jogadores e vocês, na condição de jogadores, não podem ser uma plateia de cinema. Você precisa controlar o jogo e conduzi-lo até onde deseja que ele vá. Você estará seguindo os passos de Homero. A Odisseia é fantástica, e está registrada, mas como deve ter sido ainda mais incrível quando ela era narrada pelo próprio poeta enquanto sua plateia ria ou chorava. Da mesma forma, as suas histórias ou interpretações podem ser registradas, mas elas podem ter sido muito mais interessantes quando foram contadas por aquele determinado Narrador e por aqueles jogadores específicos. Aquela história jamais será contada da mesma forma.

 

INTERPRETAÇÃO DE PAPÉIS E O DEUS OCULTO

Por Sam Inabinet

 

Até onde sei, todas as religiões e sistemas de crenças do mundo contêm em seus níveis mais profundos e esotéricos o mito do Deus Oculto. Para colocar em termos breves e simples, este mito descreve como Deus [ou Deusa, Tao, Eu Universal, “Sou o que Sou”, Mestre Todo-Poderoso, Espaço-Tempo, Azathoth ou Futuro (permita-me o risco de, em prol da brevidade, ofender indivíduos de crenças variadas ou as feministas e dizer apenas “Deus” ou “Ele”)] criou o mundo como uma forma de dissecar, examinar e avaliar a Ele próprio.

Todas as entidades conscientes são, portanto, os órgãos internos de auto-observação de Deus, cujo dever é experimentar a ampla diversidade do fenômeno mundo e reportar à Unidade Central as informações que obtiver. Mas para fazer esse esquema funcionar, Deus precisou esquecer que é Deus e limitar seu Eu universal Todo-Poderoso a um Eu finito e individual, para que a experiência do mundo não fosse reduzida a uma coleção de informações mortas e tediosas e para que a vibração do envolvimento pessoal não fosse perdida.

Embora todos os atos de criatividade recapitulem este processo, os RPGs são muito especiais, porque tornam esses atos imediatos e acessíveis a nós, criaturas meramente finitas. Todas as formas mais amplamente conhecidas de Narrativa, desde simples piadas até dramas complexos, assumem algum grau de distanciamento entre o narrador e sua plateia. Na verdade, na maioria das formas modernas, o originador da história raramente está presente quando a plateia vivencia sua criação.

O caráter imediato dos RPG repousa no fato de que criador e plateia são um só. Embora um membro do grupo, o Narrador possa ser responsável por carregar a maior parte do fardo do ato da criação, ela não estará completa até ser ativada pela presença e pela participação dos jogadores. Para o propósito deste ensaio, considerarei o grupo de jogo como uma única unidade criativa, um Deus Oculto coletivo que se manifesta no mundo coletivo do jogo (Cabe aqui comentar que, na versão original do Gênese, Deus é referido na forma plural, Elohim - “Os Senhores”).

Um dos meus sofistas favoritos, Ibn Arabi, entra em detalhes complexos sobre o relacionamento entre Deus e o mundo, entre a Unidade e a Diversidade. O plano de Ibn Arabi pode ser visualizado melhor como uma relação entre o centro e a circunferência do círculo; no centro está Deus em seu estado mais absoluto e unificado, radiando igualmente em todas as direções para definir Sua criação, a vasta pluralidade da circunferência. Cada ponto no círculo mantém seu próprio relacionamento com o centro através de seu raio, que Ibn Arabis subdivide em estágios de manifestação, desta forma criando zonas concêntricas de categorias arquetípicas. Sem enumerar essas zonas, eu as relacionaria com o próprio sistema de jogo, os meios segundos os quais Deus (os jogadores) descem até a criação (a Crônica).

No começo, havia algumas pessoas sentadas em torno de uma mesa com folhas de papel e lápis, dados e livros, entidades de potencial puro, transcendentes e não-manifestadas. E elas disseram: “Que se faça o jogo”, e o jogo se fez... Tá, tá legal, estou viajando, mas pelo menos você viu como a analogia também funciona nessa direção.

O círculo do centro, aquele que Ibn Arabi chamaria de Reino dos Nomes Divinos, determina o maior número de possibilidades. Com qual jogo brincaremos? Vampiro ou Lobisomem? Call of Cthulhu ou Monopólio? Movendo-se para fora, chegamos enfim ao Reino das Similitudes, Yesod, os verdadeiros planos da existência individual; anotações detalhadas de crônicas, mapas, planilhas de personagens com todos os espaços em branco preenchidos. E em seguida o Big Bang, o momento em que todo o potencial se materializa. “Muito bem, vocês estão sentados num bar e aparece um cara que diz...” Deus esqueceu que é Deus e pensa que é apenas você, eu, todo mundo.

Deixarei o resto do processo, o envolvimento total, o romance, a aventura, a intriga e as revelações pessoais, àqueles mais capazes que eu. Tenho de confessar que jamais consegui alcançar aquele estado no qual você está tão envolvido no jogo que esquece que é um jogador. Contudo, estou bastante familiarizado com o fenômeno de dar vida e consciência própria a uma criação.

Dentro de mim, existe um marinheiro mercante de Yorkshire, grandalhão e imbecil: um veterano de dois ou três sistemas de jogo e mudanças de gêneros, que está sempre pronto para alcançar a superfície de minha aparência calma e intelectual. Outro pensador digno de atenção é Ibn Ruwiyar, um contemporâneo de Ibn Arabi, que deu sua própria contribuição à filosofia do Deus Oculto com a metáfora do dragãozinho aprisionado numa concha. Depois de ter arranhado, chutado e cuspido fogo na concha em sua tentativa para escapar, tudo que o dragãozinho conseguiu fazer foi polir a superfície interna da concha, transformando-a num espelho perfeito. Para todas as direções que olhava, ele via apenas a si mesmo. A extensão do universo agora era seu próprio reflexo, invertido e deformado.

O ponto ao qual quero chegar - se é que existe - parece ser alguma coisa como isto: as religiões e filosofias do mundo nos estimulam a retornar ao nosso criador (a Unidade Central) levando-lhe aquilo que aprendemos. A Arte dos Jogos de Interpretação de Papéis permite uma oportunidade única de esconder o deus de nós mesmos no mundo de nossa própria criação, para vivenciarmos o círculo pleno do jogo da imanência/transcendência. Apenas esteja atento a esses momentos de satori, quando o Eu Universal desperta para sua própria divindade e tenta adivinhar onde diabos colocou o dinheiro para comprar pizza.